Atletas Geneticamente Modificados
quinta-feira, setembro 16, 2004
Durante as Olimpíadas de Atenas, fiquei conhecendo o trabalho de um pesquisador escocês bem interessante, o Andy Miah. Ele lançou um livro (julho de 2004) chamado 'Atletas Geneticamente Modificados: Ética Biomédica, Doping Genético e Esportes' no qual discute o assunto sem preconceitos nem deslumbramento. A página dele na Internet também vale uma visita, tem bastante informação sobre seus projetos ligados ao esporte, à biomedicina e à bioética.
Resolvi tentar uma entrevista, que valeria tanto para a revista em que eu estava frilando na época como também para matar minha curiosidade sobre o tema, que é instigante e desafiador - afinal, sempre fui contra os transgênicos. Agora já não sei bem ao certo...
As perguntas foram enviadas em três e-mails ao longo de uma semana. O jovem professor (tem 26 anos) respondeu a todas numa boa, de imediato. Segue a entrevista :
P - Qual é o futuro dos esportes?
R - Recentemente a Agência Mundial Anti-Doping (Wada, na sigla em inglês) anunciou um teste para a detecção do hormônio de crescimento humano. Eles trabalharam durante anos para chegar a esse ponto e agora conseguiram. O futuro dos esportes para os atletas será de incontáveis outros testes, mas isso não vai resolver o problema. A modificação genética, por exemplo, pode não ser detectada ou envolverá um procedimento muito invasivo no corpo para ser identificada. Poucos comitês éticos do esporte permitiriam tal procedimento. Portanto, temos que nos preparar para um futuro esportivo em que a modificação genética seja permitida e tentar torná-la a mais segura possível para os atletas.
P - A manipulação genética pode vir a ser usada normalmente no esporte? Entidades como o COI ou a Fifa permitiriam isso?
R - O COI não decide mais sobre políticas anti-doping - isso fica a cargo da Wada. E a agência já determinou a proibição da manipulação genética, mas acho que essa política terá que sofrer mudanças muito em breve. Especulações sobre o uso da manipulação genética já nos Jogos de Atenas deste ano variam muito. Penso ser importante considerarmos essa possibilidade. Não podemos adiar o processo de discussão sobre a moralidade dessas modificações.
Há estudos que mostram quais poderiam ser os efeitos de melhorias genéticas, mas nenhum desses estudos foram aplicados a humanos. Por esta razão, os atletas estariam se arriscando muito se usassem essa tecnologia - que pode nem melhorar seu desempenho esportivo. É por esta razão que precisamos da ciência e do debate, para assegurar que os atletas só usem tal tecnologia de forma segura e com resultados.
P - Isso não vai contra o espírito esportivo de superação de limites? Não seria o fim do esporte como o conhecemos hoje?
R - O esporte hoje já é uma competição entre tecnologias. O esporte é, ele mesmo, uma tecnologia. Se baseia na interseção da humanidade com a ciência. E isso não deveria ser visto como algo negativo. Quando muito, essa nova tecnologia vai melhorar a autonomia do atleta e permitir a ele se dedicar a outras formas de ser humano. Isso seria bom para o esporte, em que a ideologia do homem 'natural' não faz o menor sentido.
P - Em seu livro 'Atletas Geneticamente Modificados', você diz que alguns atletas que estarão em Atenas podem já ter sido geneticamente modificados. Em quê você se baseou para fazer tal afirmação?
R - Se olharmos para a história do anti-doping, o conhecimento sobre o que os atletas estão tomando ou não sempre foi objeto de especulação. Temos que nos basear no que a ciência nos dá e assumir que os atletas estarão sempre em busca de métodos não-detectáveis para melhorar seu desempenho. Nós sabemos que a tecnologia do doping genético é possível, mesmo não sabendo se terá o efeito desejado.
Estudos mostram como pode ser possível para um atleta aumentar sua massa muscular ou capacidade de resistência usando a tecnologia de transferência genética. Aqueles que negam a possibilidade disso acontecer hoje, não negam que seja possível acontecer. Eles negam que seria uma melhoria de fato. Não temos evidências para afirmar isso, mas isso não significa que está além dos limites do possível. Para outras formas de doping, nós admitimos que haja a possibilidade de novas drogas, e por isso temos que pensar da mesma forma em relação à modificação genética.
P - Como a modificação genética pode melhorar o esporte e o desempenho do atleta?
R - As aplicações atuais indicam maneiras de se aumentar a massa muscular utilzando-se de fatores de crescimento, como o IGF-1, que é parecido com a insulina. Para aumentar a capacidade de resistência de uma pessoa, pode-se promover o desenvolvimento dos glóbulos vermelhos do sangue, que carregam oxigênio pelo corpo. Isso é possível pela introdução de DNA externo por meio de um vírus, que infectaria uma determinada área do corpo do atleta com o novo DNA. No entanto, outras aplicações são possíveis também. A transformação ou desligamento de certos tipos de fibras musculares para otimizar o uso das fibras desejadas poderia ajudar aos corredores de longas distâncias. A alteração genética da sensação de dor também poderia beneficiar um atleta durante uma competição.
P - Você acha que a modificação genética pode ser permitida, ou pelo menos tolerada, pelos organismos esportivos internacionais, como o COI?
R - Temos que observar mais cuidadosamente outras formas de lidar com a modificação genética no esporte. Só os testes anti-doping não são a solução. Este ano, a Agência Mundial Anti-Doping (Wada) proibiu antecipadamente o doping genético, mas outras questões precisam ser feitas. Há uma questão mais abrangente em jogo com a modificação genética, que tem a ver com o papel da tecnologia genética na sociedade.
A Wada está preocupada sobre a saúde dos atletas e com o espírito do esporte. Pois eu acho que as duas coisas podem ser preservadas mesmo que a modificação genética seja permitida. Aliás, como a tecnologia genética promete formas mais saudáveis de modificação do desempenho esportivo do que os atuais métodos de doping, isso seria preferível do que o uso de drogas sintéticas, que provocam todos os tipos de efeitos colaterais desconhecidos. A decisão sobre esse assunto não pode ficar apenas no mundo do esporte.
P - A manipulação genética pode melhorar o sentido de competição ou o esporte está condenado caso se aproxime muito de tal tecnologia?
R - O esporte é uma atividade tecnológica. A tecnologia melhora a competição. A modificação genética não dá ao atleta um atalho para a medalha de ouro. Talvez faça com que o atleta treine mais. O esporte perpetua uma ambigüidade sobre como gosta de usar a tecnologia. Às vezes a tecnologia é vista como algo positivo, outras vezes é ameaçadora. As autoridades anti-doping precisam considerar um contexto mais amplo do uso da tecnologia no esporte para debater o doping genético.
Por exemplo, como diferenciar a aceitabilidade do doping sangüíneo e uma nova raquete de tênis? Nos dois casos temos algum tipo de melhoria no desempenho, mas nossas reações a cada um é bem diferente. Não é tão simples dizer que o doping sangüíneo é anti-ético porque há o risco para a saúde do atleta. Muitas inovações - incluindo raquetes de tênis - já provocaram todos os tipos de contusões. Precisamos de uma política mais sofisticada para lidar com a questão do aumento do desempenho esportivo
P - Quais são os problemas éticos em relação à modificação genética no esporte e na vida moderna em geral?
R - Um dos maiores problemas tem a ver com o significado cultural da genética. A tecnologia genética sofreu uma publicidade negativa considerável e muitas pessoas pensam que será usada para criar o absurdo ou humanos grotescos, mais parecido com o monstro do Frankstein. Ao caracterisar a modificação genética no esporte como outra forma de doping, nós já prejudicamos a análise da situação. Temos que procurar avaliações mais razoáveis do uso da tecnologia genética na sociedade. Vamos depender dela cada vez mais. Isso não significa que não haja questões éticas a serem avaliadas. Vamos ter que discutir as preocupações em relação à privacidade individual, autonomia, preocupações sobre a trivialização da vida humana.
P - Atualmente há uma grande preocupação em relação ao uso das técnicas de modificação genética na agricultura. Alguns dizem essa técnica pode ser a solução para a fome no mundo, mas outros afirmam que é perigoso e não deveria ser usada. Qual a sua opinião a respeito?
R - Como a modificação genética foi caracterizada como 'brincar de Deus', criamos uma sensação de que é uma tecnologia inconsistente com a natureza. Não vejo dessa forma. Se fosse assim, poderíamos considerar várias outras técnicas de agricultura inconsistentes com a natureza também. A modificação genética em humanos é uma extensão de como usamos a medicina. Estamos tentando promover vidas mais saudáveis e felizes. Isso não tem nada a ver com o projeto de eugenia, de criar pessoas perfeitas. Deveria ser visto como uma decisão individual e legítima sobre como uma pessoa deseja melhorar a si mesma.
# Jorge Cordeiro @ 22:56
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